A brutalidade e a fábrica de monstros

Data: 28/05/15

O sentimento de horror veio como uma flecha em chamas. Atingiu o coração de muitos de nós diante da crueza e da brutalidade do assassinato do médico na Lagoa Rodrigo de Freitas. A sensação é de que a qualquer momento um de nós pode se tornar vítima dessa torrente de violência que nos assola, oprimindo e nos fazendo encarcerados em nossas próprias casas.

Que cidadão é capaz de dizer que anda pelas ruas sem receios hoje em dia? Difícil controlar os medos, seguir adiante, acreditar em dias melhores. Mas aproveito o momento para pedir um momento de reflexão a todos que param alguns segundos por aqui, para ler estas linhas. Por que tanta brutalidade nas veias de um adolescente? Recém-saído da infância, que seguramente não teve o rapaz, não pensou em roubar a bicicleta e esfaquear se houvesse uma reação. Sua meta foi, desde o momento e nesta ordem, matar e levar a bicicleta.

Como ele, existem diversos espalhados, perambulando meio que sem destino, pelas ruas do Rio de Janeiro e do resto do Brasil. Monstros que foram alimentados por anos de crueldade, falta de assistência e violência social. Indivíduos sem apego algum pela vida dos outros, porque acreditam piamente que esses outros não tem nenhum interesse pelas suas vidas. E, via de regra, isso é verdade.

Foi realmente brutal a morte do médico. Mas saltou aos olhos do mundo por uma série de fatores. A brutalidade foi um deles, com certeza. Outro, seguramente, foi a vítima e o local do crime, cartão-postal de uma das cidades mais faladas do mundo. Devemos, mesmo, ficar horrorizados.

Mas poucos param para pensar nos superlativos números de ataques com facas que ocorrem diariamente nos rincões mais distantes deste país. Engana-se quem acredita que a violência empregada no ataque é um fato isolado. Todos os dias, em comunidades esquecidas por nós e pelo tempo, milhares de pessoas são perfuradas com facas, espetos, navalhas, tem familiares violentados, são humilhados de diversas formas por opressores oficiais ou não.

Pouco refletimos sobre a desgraça real na qual uma parcela significativa da população brasileira está inserida. Crianças como o adolescente assassino do médico, crescem num contexto de violência e abandono que se renova a cada dia, quando gestores escolhidos à dedo, perpetuam a situação de invisibilidade social dessas pessoas.

Quem desconhece a realidade desses indivíduos, é capaz de reclamar dias e dias se os garis entram em greve. Não suportam a sujeira. O lixo nas ruas é incompatível com sua noção de civilidade. É mesmo? O que achariam de viver num local onde o lixo faz parte da paisagem? Onde caminhões de lixo são partes de histórias contadas por alguns moradores que trabalham em cima deles?

E o esgoto? As “línguas” negras que avançam pelo mar, que tanto incomodam. Redes que estouram e deixam vazar o resto não tratado das descargas, levando mau cheiro às praças e vias dos centros urbanos. Já imaginaram um “recanto” no qual o esgoto corre a céu aberto? Onde crianças e donas de casa dividem seu espaço com ratos e outros vetores de doenças típicas da falta de saneamento?

Para os habitantes do mundo visível, quando chove muito, é o caos pois seus carros ficam paralisados no trânsito, ou muitos ficam ilhados ou confinados por conta das águas descontroladas pelos bueiros entupidos e falta de escoamento. Para os invisíveis, os “Ninguém”, a chuva pode significar o fim da sua vida ou de toda a família, ou de toda a vizinhança. Suas casas desabam, seus parentes morrem e ponto final. Dificilmente serão manchetes nos maiores periódicos do mundo.

Diante do caos total, da falta de amparo, da ausência de poderes mínimos de um Estado criado e pensado para ignorá-los, jovens são alimentados por ódio e sentimento de revolta. Sem querer vitimizá-los, mas enxergando a realidade com a dureza que ela carrega consigo. Nosso descaso, talvez não de agora, mas de décadas atrás, acelerou a máquina de fabricação de monstros. Jovens assassinos, quase psicopatas, que desconhecem o significado de palavras como respeito, amor, consideração. Crianças que odeiam o mundo e que colocam em nós a culpa por tudo de ruim que a vida lhes reservou. E muitos de nós pensam de forma simplista dentro de sua lógica de segregação: quanto mais longe de nós esses indivíduos estiverem, melhor. E se forem delinqüentes, que sejam encarcerados e, se possível, esquecidos.

O que fazer, então? São coitados? Sim e não. É preciso retirá-los do convívio social? Sim. A punição se faz mais que necessária. Mas é preciso ter consciência que a produção em série de jovens que odeiam o mundo e as pessoas não para. O processo de criação do monstro começa segundos após o seu nascimento. São segundos preciosos, nos quais o poder público precisa mostrar sua presença. E nós, da sociedade civil, temos a obrigação de arregaçar as mangas para criar modificações significativas em nosso meio. Para que tenhamos uma vaga esperança, de que um dia poderemos voltar a andar sem medo pelas ruas das nossas cidades.

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